Constança Festas é docente e investigadora do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica no Porto. A sua área de investigação prende-se com a Saúde Infantil e Pediátrica: “desafiam-me as situações de grande vulnerabilidade”. Em pequena queria ser cientista, mas o seu percurso acabou por levá-la ao encontro da Enfermagem. “Até aos dias de hoje!”, refere com orgulho, porque “a Enfermagem primeiro estranha-se, depois entranha-se e a seguir não se consegue mais largar.” Nos tempos livres? Dançar, ler, caminhar e cozinhar!
O que é que a fascina na Enfermagem?
O que me fascina é a oportunidade de ajudar o Outro. A Enfermagem é uma profissão com competência para ajudar as pessoas quando experienciam situações de alguma vulnerabilidade. O facto de podermos relacionar-nos com as pessoas nestes momentos de fragilidade é um privilégio.
“O propósito da Enfermagem é ajudar e acompanhar as pessoas ao longo de todo o ciclo da sua vida.”
A Enfermagem acabou por ser uma surpresa na sua vida …
Sim, totalmente. Eu sempre quis ser bióloga ou cientista. Esta era a minha paixão desde criança. Na verdade, a Enfermagem nunca me tinha passado pela cabeça. Quando fui para a universidade, ingressei na Faculdade de Ciências, no curso de Química. No fim do primeiro semestre percebi que não era para mim. Nessa altura, alguém me disse que tinha aberto uma segunda fase para o curso de Enfermagem na Escola de Enfermagem da Imaculada Conceição, que atualmente é a Escola de Enfermagem do ICS no Porto. Lá decidi ir, sem grande expectativa, experimentar Enfermagem e aqui estou até aos dias de hoje. A Enfermagem, no princípio, estranha-se, depois entranha-se e a seguir não se consegue mais largar.
O que é que marcou a sua infância?
Vivi numa família numerosa, somos quatro irmãs. Os meus pais eram comerciantes e tinham um restaurante. Eu e as minhas irmãs começamos a trabalhar no negócio da família desde cedo e o trabalho, claro, era proporcional à idade. Todas colaborávamos na medida de cada uma e sem nunca descurar os estudos, porque esse sempre foi o grande incentivo dos meus pais. Mas todos contribuíamos de alguma forma. Sabíamos que qualquer que fosse a nossa contribuição era importante. Foi-me transmitido um sentido de união e, também, um grande sentido de trabalho. São estes valores que mais marcaram a minha infância. Era muito engraçado a analogia que o meu pai construiu em torno desta nossa dinâmica de família. O meu pai dizia que éramos como um carro. Eu e as minhas irmãs éramos as 4 rodas, o pai o volante e a mãe toda a estrutura do carro, isto porque nenhum carro consegue andar se não tiver todos estes elementos… Nunca mais me esqueci disto.
“A filosofia do nosso plano de estudos distingue-nos completamente, na medida em que privilegiamos o contacto humano.”
Trabalhou, enquanto enfermeira, na Casa de Saúde da Boavista e no IPO no Porto. Acredito que tenha assistido a realidades duras.
As realidades são sempre impactantes na nossa vida. O segredo está em encontrarmos um propósito em tudo. Sempre que me deparava com situações complicadas de doentes que estavam mesmo muito mal, pensava no propósito e na missão do meu trabalho. O propósito da Enfermagem é ajudar e acompanhar as pessoas ao longo de todo o ciclo da sua vida e, muitas vezes, o nosso papel está em ajudar as pessoas a morrer de forma digna. A ciência pode não conseguir fazer mais nada, mas os Enfermeiros conseguirão fazer mais alguma coisa pela pessoa e pela vida que está à nossa frente. Quando entrei no curso tinha um medo tremendo da morte. Mas o tempo corre e passamos a ser capazes de perceber o sentido da vida em todas as suas fases: o nascimento, o crescimento, o envelhecimento e a morte. O enfermeiro pode fazer a diferença em todas estas fases e é isso que me faz chegar a casa confiante no meu propósito de que tenho o poder de fazer a diferença na vida das pessoas. Um dia uma doente disse-me “Enfermeira Constança, eu acho que hoje vou morrer, não me pode deixar sozinha”. Eram onze da noite e por isso havia ainda muitas horas pela frente até ser de novo dia e as noites são sempre especialmente difíceis quando se está numa cama de hospital. A doente tinha trinta e poucos anos e estava num estado muito crítico. Dentro da equipa daquele turno, ficou decidido que íamos agir completamente ao contrário do habitual: “Constança, vais ficar com a doente, porque se a deixarmos sozinha, pode mesmo acontecer o pior”. Ali fiquei ao lado dela, a noite inteira e sempre de mão dada. Quando começou a amanhecer a doente disse-me “Enfermeira Constança, já pode ir. Salvou-me a vida ….” A doente conseguiu sobreviver à noite derradeira e acabou por recuperar, quase que por milagre. Foi a coisa mais avassaladora que me aconteceu.
De que forma é que é diferenciador estudar Enfermagem na Católica no Porto?
Durante muitos anos estive ligada à coordenação da licenciatura e houve um momento em que tivemos de tomar a decisão de fazer um plano de estudos diferente de todas as outras escolas do país. A filosofia do nosso plano de estudos distingue-nos completamente, na medida em que privilegiamos o contacto humano através da prática da Enfermagem em diversos contextos. Ao contrário dos planos das outras escolas, em que apenas começa a haver ensino prático depois do 2º ano, nós optámos por colocar ensino prático logo no primeiro semestre do primeiro ano. Não conseguimos conceber um enfermeiro que não goste verdadeiramente de pessoas e de cuidar de pessoas e, por isso, consideramos essencial o contacto logo desde o primeiro ano. Para nós é fundamental que a prática acompanhe a teoria. A outra característica que nos diferencia é a forma como nos relacionamos com os estudantes. Existe uma relação pedagógica muito próxima. Atentamos ao processo de desenvolvimento de cada aluno e acreditamos que é esta proximidade que faz com que os nossos estudantes saiam daqui, verdadeiramente, transformados.
“Quem não conhece a sua história, não sabe qual é o seu futuro.”
O que é que se sente quando se vê estudantes a terminar a licenciatura ao fim de 4 anos de uma relação muito próxima?
Acompanhar a evolução dos estudantes é um grande privilégio. É muito gratificante! Eu leciono uma unidade curricular no primeiro semestre do primeiro ano e nessa altura acompanho de perto as primeiras emoções sobre o que é a Enfermagem. No quarto ano, leciono também uma unidade curricular no último semestre e aí já os vejo muito mais autónomos e constato que já se apropriaram do conhecimento e das habilidades, tendo agora um conjunto de recursos para poderem prestar Cuidados de Enfermagem e tomarem decisões sobre as situações de saúde/doença das Pessoas. A sensação de orgulho é imensa.
Leciona a disciplina de História da Enfermagem. Porque é que é relevante o estudo do passado?
Ninguém consegue viver o presente, nem projetar um futuro, se não conhecer a sua história. Na Enfermagem é exatamente a mesma coisa. É preciso compreender quem é que começou a cuidar com esta intencionalidade, quem é que reclamou o primeiro salário para um trabalho de tanta responsabilidade, quem é que começou a pensar na conceção teórica capaz de suportar a profissão, de que forma é que a profissão foi, primeiramente, organizada, entre muitas outras coisas. Temos de conhecer os intervenientes, os contextos, os diferentes acontecimentos. Temos de compreender que a Enfermagem que hoje conhecemos, e que ainda tem muito para percorrer, é fruto de uma história própria. Só conhecendo a história é que conseguimos dizer assertivamente que queremos fazer diferente. Quem não conhece a sua história, não sabe qual é o seu futuro.
A sua área de especialização é a da Saúde Infantil e Pediátrica, área que coordena, inclusivamente, no Mestrado em Enfermagem. O que é que a desafia nesta área?
A vulnerabilidade das crianças e dos seus pais. As crianças nem sempre conseguem comunicar eficazmente, compete aos enfermeiros interpretar o que é que significa aquele choro ou aquela careta, o mesmo se passa com os pais. É esta situação de grande vulnerabilidade que me desafia. No âmbito do meu doutoramento e de outras investigações que promovi, foquei-me na Saúde Escolar, para compreender de que forma é que, nos contextos escolares, os enfermeiros podem capacitar crianças e jovens para melhor tomarem decisões sobre a sua saúde. Trata-se de uma grande oportunidade, se tivermos em conta que as crianças passam muito tempo na escola e que esse tempo pode ser aproveitado para promover a saúde, através da ação dos enfermeiros.
“A investigação aproxima-nos das realidades.”
Para alguém que gosta tanto do contacto humano, a investigação pode ser um trabalho solitário?
Diria que não, porque a investigação tem a ver com esta possibilidade de trazer
mais conhecimento para melhorar as práticas. Se eu quero melhorar a forma de capacitar as crianças, eu tenho que estudar e tenho que ir para os contextos recolher elementos e informações e coloco-me, assim, em contacto com os outros. O processo de investigação dá a oportunidade de estar junto da realidade que se estuda e depois usar essa informação para melhor capacitar quem vai utilizar a investigação para fazer mais e melhor Enfermagem no Futuro. A investigação não nos afasta, a investigação aproxima-nos das realidades.
Quem é que a tem inspirado ao longo da sua vida?
A minha mãe. Pela sua força, coragem e entusiasmo. Quando for grande, quero ser como ela! (risos)
O que é que gosta de fazer nos seus tempos livres?
Gosto muito de dançar e de ler. Através da leitura consigo entrar noutras realidades. Gosto também muito de caminhar, porque é libertador, e de cozinhar, porque é terapêutico. Aventuro-me em confecionar pratos que demoram mais tempo, demoro-me a pôr a mesa, cuido dos pormenores, no fundo dedico-me a criar um momento especial para a família.
Pessoas em Destaque é uma rubrica de entrevistas da Universidade Católica Portuguesa no Porto.